OS DESDOBRAMENTOS SOCIOESPACIAIS DA APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO: UMA ANÁLISE DA “FAVELA DO JARDIM CLÍMAX” EM DOURADOS-MS
João Paulo Muniz Marin
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
Membro do Grupo de pesquisa Terrha
paulomarin22@hotmail.com
Maria José Martinelli Silva Calixto
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
Membro do Grupo de pesquisa Terrha
mjmartinelli@yahoo.com.br
Este trabalho (vinculado ao projeto de pesquisa “Transformações territoriais na fronteira internacional Brasil-Paraguai: o caso do município de Dourados, estado de Mato Grosso do Sul”), visa contribuir para o entendimento do processo de apropriação do espaço urbano e seus desdobramentos socioespaciais, tomando como recorte territorial para análise uma área localizada na porção sudoeste da cidade de Dourados-MS, denominada “Favela do Jardim Clímax”, e tentando resgatar algumas das facetas da situação que se estabelece, partir da análise desta realidade.
O conflito se estabelece, na medida em que as relações de propriedade impõem limites de uso e, dentro desta lógica, os ocupantes de áreas irregulares ou favelas, são atropelados pela instituição jurídica da propriedade privada da terra, que diferencia o acesso à cidade e determina a necessidade de habitar um lugar.
Destacamos, inicialmente, que a questão das ocupações irregulares, ou da favela, deve ser pensada a partir da perspectiva do uso e não somente por determinações de ordem jurídica, pois, o sentido da cidade, ocorre pelo uso, embora a propriedade privada, imponha limites a esse uso. E, neste âmbito, a vida é ameaçada pelas relações jurídicas, ou pelo monopólio jurídico, da propriedade privada da terra.
Para Carlos (2004, p. 21), “... o uso se revela enquanto modo da reprodução da vida, através dos modos de apropriação do espaço – colocando a noção de reprodução no centro da análise”. E continua: ‘... a cidade revela-se concretamente , e através do uso que dá sentido à vida é no uso (como ato e atividade) que a identidade se realiza como atividade prática que sustenta a memória, assim se revela o conteúdo da prática socioespacial” (p. 31).
Se morar é uma condição necessária à reprodução humana, o direito de propriedade não pode estar acima dessa condição fundamental de reprodução. Nesse sentido, a luta pelo direito à cidade tem a dimensão mais ampla da luta pela vida.
O morador da favela ou de área juridicamente irregular, encontra-se subjugado por uma lógica que se pauta no valor de troca em detrimento do valor de uso, colocando em confronto um direito garantido juridicamente (a propriedade) e um valor essencial: a necessidade morar.
A configuração urbana, enquanto território que se redefine continuamente, expressa a lógica que move o processo de apropriação diferenciada do espaço.
O surgimento da favela deve ser entendido como uma das facetas do processo de apropriação das melhores localizações no interior da cidade, sendo ainda, contraditoriamente, resultado do processo cotidiano de luta pelo espaço urbano.
Em linhas gerais e com base em Rodrigues (1988), pode-se afirmar que o surgimento das favelas resulta da conjunção de algumas dinâmicas, dentre as quais vale citar: a exploração da força de trabalho no campo (levando à migração rural-urbano); o processo de empobrecimento da classe trabalhadora e, sobretudo, do preço da terra urbana.
Logo, a determinação da realidade objetiva, vem permeada por múltiplos fatores. Nesse processo, não podemos desconsiderar o fato de que a terra, no sistema capitalista, tornou-se uma mercadoria acessível apenas aos que podem pagar por ela, o que faz com que a questão assuma diferentes desdobramentos, uma vez que a necessidade de uso passa a ser submetida às condições de apropriação, ditada pela lógica da propriedade privada.
Os múltiplos territórios da cidade expressam diferentes formas de apropriação, que, por sua vez, acabam por afastar parcela significativa da população da possibilidade de uso.
O contato com o objeto de pesquisa, ou seja, a “Favela do Jardim Clímax”, nos permitiu perceber que alguns ocupantes encontram-se na área desde a segunda metade da década de 1970. Assim, a área revela traços que apontam para a necessidade de investigação. Sua aparência degradada acabou por instigar a necessidade de aproximação da análise.
Os casebres construídos em condições precárias expressam conflitos de várias ordens. Para além da aparência da área (constituída por casebres amontoados, sem rede de água ou esgoto, com pouca ventilação, sem condições de salubridade, com parcos equipamentos de higiene, etc), há um ritmo que revela o modo de reprodução da vida daqueles que parecem não ter direito à cidade e que incomodam com sua presença.
O fato de a área ser cortada por uma galeria de águas pluviais (que por falta de infra-estrutura adequada, acabou virando esgoto a céu aberto), faz com que seus ocupantes tenham que conviver com o problema das enchentes, sobretudo aqueles cujas “casas” localizam-se mais próximas à “valeta” da galeria. Em dias de chuva forte estes moradores são obrigados a retirar seus pertences da “casa” e procurar abrigo nos vizinhos que ocupam local mais elevado, ou mais distante da galeria.
Assim, seus ocupantes compartilham solidariamente e fisicamente várias situações. A situação de carência, de ausência de plano de saúde ou odontológico, de sub-emprego, de emprego de baixa remuneração e, conseqüentemente, de necessidades básicas e imediatas, faz com que se agrave a condição de miserabilidade, de analfabetismo, de baixa escolaridade, etc., lançando os ocupantes da área em uma dramática adversidade.
Nessa rede de relações, a diversão, ou o lazer dos moradores/ocupantes é realizado no próprio local, onde compartilham o tereré e, quando possível, uma cerveja, ouvem música e vivenciam, no lugar, situações de amizade e solidariedade. Alguns costumam freqüentar o Parque Antenor Martins , em ocasião de festas ou em finais de semana, contudo, reclamam dos preços elevados dos alimentos e bebidas vendidos no local. Não costumam freqüentar o shopping da cidade, teatro ou cinema. Parte das famílias recebe auxílio como, bolsa escola e bolsa família. Neste sentido, os ocupantes da área não compartilham, com os demais habitantes da cidade, o mesmo território urbano ou a mesma concepção de cidade.
Essa realidade intensifica as contradições, fazendo com que a configuração urbana se redefina, uma vez que a lógica que determina a diferenciação socioespacial pauta-se nas formas de apropriação do espaço, as quais mediam e, sobretudo, negam o direito de uso. Se considerarmos a ocupação ou a favela uma forma de tentar assegurar o direito de uso, veremos que representa uma resistência e um desafio à lógica que tenta reduzir o direito/necessidade de morar à imposição/garantia da propriedade privada.
Vale destacar que a prefeitura municipal vem “negociando” com os ocupantes da área, uma proposta de remoção e, essa possibilidade, tem dividido opiniões. Os moradores/ocupantes têm conhecimento ou já foram informados a respeito da desocupação. Contudo, alguns, devido às relações estabelecidas com o lugar, não querem deixar o local, sobretudo aqueles que “compraram” a moradia ou adquiriu o direito de uso do local. Ou seja, além do apego ao lugar, há também a resistência em se desfazer da “casa”.
Por outro lado, os ocupantes cujas “casas” foram construídas às margens da galeria de águas pluviais, embora manifestem desejo de deixar o local, não concordam com as condições impostas pelo poder público, alegando que o lugar determinado para a nova moradia, não é asfaltado, é distante, não apenas da área central da cidade, mas também de escola, creche, posto de saúde e do local de trabalho. Os ocupantes da área ainda temem pela violência no novo local de moradia, pois, segundo eles, poderá haver conflitos uma vez que a nova área promoverá a junção de pessoas diferentes. Alegam que ali todos se conhecem, não ocorrendo casos de roubos ou pequenos furtos.
Vale destacar que a “Favela do Jardim Clímax” tem boa localização. Além da acessibilidade com outros pontos da cidade, os ocupantes podem contar com escola, posto de saúde, etc, existente nos bairros próximos. Esses fatores reforçam o sentimento de pertencimento, fazendo com que várias objeções se coloquem diante da possibilidade de remoção e, conseqüente, da ocupação de uma nova área, conforme determinado pela prefeitura.
Por mais difícil que seja viver em condições precárias e adversas, para alguns, o lugar tem um significado inestimável. É ali, que, mesmo na precariedade, todas as relações se dão, relações com a vizinhança, com o posto de saúde, com a escola, com o Parque Antenor Martins, etc. É ali que ocorrem as brincadeiras das crianças. É ali que as relações cotidianas se manifestam, dando sentido e significado ao local. É ali que se construiu e se constrói cotidianamente a identidade com a própria existência.
No processo de luta pelo direito à cidade, ou na busca de uma possibilidade/alternativa de uso do espaço urbano, ainda sonham com uma moradia digna ou com a casa própria. Nas palavras de Peluso: “Em sociedades mercantilizadas como a nossa, a casa é uma mercadoria a ser apropriada e, para os pobres, significa uma acumulação simbólica, num mundo em que a acumulação material é interditada para a maioria da população”.(1997, p.236)
Considerando essas premissas, a presente proposta de trabalho se justifica pela possibilidade de contribuir para o entendimento do processo de luta no e pelo espaço urbano, oferecendo uma contribuição na abordagem da problemática da moradia em Dourados-MS.
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